Eu costumava ficar com mamãe durante os trabalhos e as noites no velho bar. Um dia, três amigas que vinham com frequência entraram e eu, pela primeira vez, observei-as com curiosidade.
Cassandra, foi quem chegou primeiro, com seus olhos de cão. Depois Mathilda, com seu véu erguido sobre a cabeça e, finalmente, Pagu, bem depois das outras duas, com seus desenhos de janelas. As meninas, como mamãe falava.
Mamãe e eu e mamãe ouvíamos interessadas atrás do balcão a conversa entrecortada durante aquele estranho chá. Lugar estranho mesmo para um chá, mas não bebiam chá, mas diziam que era hora do chá. O bar era velho, mal cuidado e tinha um papel de parede amarelo se despedaçando logo atrás do balcão.
Com a chegada de Pagu concentraram o assunto no tema da condição humana, o que acabou levando a outros, como bordados, a necessidade de saber gozar para mulheres modernas como elas (neste momento, mamãe se levantou para ligar a caixa de som e em seguida foi atender uma amiga de juventude que a esperava na porta) e, voltando ao começo da conversa, as três falavam sobre a força da idade.
Então, as três marias, como passei a chamá-las, se dirigiram a mim para fazer o pedido.
Enquanto servia o frango ensopado da minha mãe, ouvi que falavam também sobre futuro, planejavam os anos que estavam para chegar e iriam transformar nossa jovem democracia no país das mulheres.
Tocava Billie Holiday, que mamãe gostava.
Mathilda disse alto e num tom de devoção que o sal é um dom de mamãe e, por isso, gosta tanto de vir. Fico satisfeita quando reconhecem as pequenas virtudes gastronômicas dela.
A noite terminava no velho bar. Cassandra, insaciável por um amor feliz, voltava para casa no seu papel de mulher desiludida. Pagu disse que ia traçar seu caminho de artista esta noite, mas antes ia dar um pulo na festa de Babette. Mathilda, com seus exercícios de leitura debaixo do braço, partiria em breve numa viagem para descobrir a força das coisas.
Fiquei com os olhos d’água pensando em como aquelas três mulheres fortes reunidas no velho bar de mamãe me deixaram com a memória de uma amizade eterna.
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Os trabalhos e as noites. Alejandra Pizarnik. Tradução de Davis Diniz. Belo Horizonte: Relicário, 2018.
Cassandra. Christa Wolf. Tradução de Marijane Vieira Lisboa. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
Com meus olhos de cão. Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2006.
Mathilda. Mary Shelley. Tradução de Bruno Gambarotto. São Paulo: Grua Livros, 2015.
O véu erguido. George Eliot. Tradução de Lilian Jenkino. São Paulo: Grua Livros, 2015.
Pagu. Vida-obra. Augusto de Campos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Desenhos. Sylvia Plath. Tradução de Matilde Campilho. São Paulo: Editora Globo, 2014.
As meninas. Lygia Fagundes Telles. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.
Mamãe e eu e mamãe. Maya Angelou. Tradução de Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
Durante aquele estranho chá: Memória e Ficção. Lygia Fagundes Telles. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
O papel de parede amarelo. Charlotte Perkins Gilman. Tradução de Diogo Henriques. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
A condição humana. Hannah Arendt. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
Bordados. Marjane Satrapi. Tradução de Paulo Werneck. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Saber gozar. Estudios sobre el placer en Platón. Beatriz Bossi. Editorial Trotta. Madrid: 2008.
Amiga de juventude. Alice Munro. Tradução de Elton Mesquita. São Paulo: Globo, 2014.
A força da idade. Simone de Beauvoir. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
As três Marias. Rachel de Queiroz. São Paulo: Siciliano, 1992.
O frango ensopado da minha mãe: crônicas de comida. Nina Horta. São Paulo: Companhia das Letras, 2015
Os Anos. Virginia Woolf. Tradução de Raul de Sá Barbosa. Osasco, SP: Novo Século Editora, 2011.
Democracia. Joan Didion. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
O país das mulheres. Gioconda Belli. Tradução de Ana Resende. Campinas, SP: Verus, 2011.
Billie Holiday, biografia. Sylvia Fol. Tradução de William Lagos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.
Devoção. Patti Smith. Tradução de Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
O sal é um dom. Mabel Veloso. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2015.
As pequenas virtudes. Natalia Ginzburg. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
Um amor feliz. Wislawa Szymborska. Tradução de Regina Przybucien. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
A mulher desiludida. Simone de Beauvoir. Tradução de Helena Silveira e Maryan A. Bon Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
O caminho do artista. Julia Cameron. Tradução de Leila Couceiro. Rio de Janeiro: Sextante, 2017.
A festa de Babette. Karen Blixen. Tradução de Cassio Arantes Leite. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Exercícios de leitura. Gilda de Melo e Souza. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2008.
Viagem & Vaga música. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
A força das coisas. Simone de Beauvoir. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 2018.
Olhos d’água. Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
Três mulheres fortes. Marie Ndiaye. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2013. A memória de uma amizade eterna. Gail Caldwell. Tradução de Beatriz Bastos. São Paulo: Globo, 2011.
Publicado na newsletter atrás da porta em junho de 2021.